quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

HUMANITAS Nº 80 – FEVEREIRO 2019 – PÁGINA 5

MIGUEL ARRAES E OS ALGOZES DA DEMOCRACIA
Evaldo Costa é jornalista. Atua no Recife/PE

“Meu mandato é inegociável. Existe até que expire sua duração legal ou enquanto eu for vivo. Posso ser preso, mas não deposto”, disse o então governador Miguel Arraes, em 1º de abril de 1964, a três coronéis e um almirante que tentavam convencê-lo a renunciar ou a aceitar secretários indicados pelos militares que derrubavam o governo João Goulart.
Tinha como testemunhas, além dos quatro militares, o então superintendente da Sudene, Celso Furtado, o prefeito Pelópidas Silveira, que seria preso no dia seguinte, e outras poucas pessoas. “Tenho oito filhos. Como iria olhar para eles se aceitasse isso?” – perguntou?
Havia canhões posicionados contra o Palácio, na Rua da Aurora e na própria Praça da República, desde a madrugada. Consultado pelo comandante da Polícia Militar se deveria resistir militarmente, foi claro: “Não! Desmobilize qualquer aparato bélico. Não quero ver derramamento de sangue”.
Miguel Arraes saiu do Palácio em um fusca, conduzido pelo amigo Waldir Ximenes, para a prisão em Fernando de Noronha e, no segundo semestre do ano seguinte, deixou o país para quinze anos de exílio na Argélia. Viveu até o risco da eliminação física, na própria Argélia, no bojo da chamada Operação Condor.
Este episódio e suas prolongadas e penosas consequências são costumeiramente apresentados como definidores da trajetória política de Miguel Arraes que, se vivo fosse, faria 93 anos no dia 15 de dezembro deste ano.
 E é por isso que foi homenageado, em 2018, com a inscrição do seu nome no Panteão da Pátria, por decisão do Congresso Nacional e proposta do deputado Tadeu Alencar.
Para que serve um panteão? Os Estados Unidos têm zelo religioso pelos seus pais fundadores. Com isso, procuram instituir padrão de conduta, modelos virtuosos, indicar exemplos a serem seguidos.
E o que ensina a biografia de Miguel Arraes de Alencar?
Que o cumprimento do dever não está condicionado a contingências pessoais. Ofereceram a ele a continuação no cargo, se aceitasse nomear secretários impostos (a maioria dos 22 governadores aceitou esta fórmula). Recusou. Disseram que se, simplesmente, renunciasse seria deixado em paz. Disse não e pagou o preço.
Que o que se diz por escrito ou em palanque não pode ser mudado ao sabor das conveniências. Arraes tinha compromissos claros com o povo pobre de Pernambuco e só não honrou quando foi impedido.
Na Prefeitura do Recife, realizou uma obra social que ainda marca a paisagem da cidade. Como governador, garantiu a livre organização dos trabalhadores e mediou o Acordo do Campo que, pela via do entendimento, trouxe a zona da mata de Pernambuco da idade média para o século XX.
Os valores de um homem público não podem ir ganhando novas formas como nuvens ao vento.
No segundo e no terceiro governo pós-regime militar, Arraes continuou fiel aos mais pobres.
E continuou construindo soluções para problemas seculares.
Três quartos dos pernambucanos viviam nas trevas. Os programas de eletrificação fizeram Pernambuco ser o primeiro estado da federação a ter todos os domicílios, rurais inclusive, ligados à rede de distribuição de energia. Independentemente da renda do morador.
Os programas de microcrédito mudaram muitas vidas décadas antes de garantirem Prêmio Nobel na Ásia.
Que a coerência é necessária. Arraes era um homem de esquerda que sempre foi capaz de dialogar e de encontrar espaços de entendimento com quem pensava diferente dele. Nunca quis hegemonia absoluta. Sempre foi capaz de fazer alianças que permitissem consolidar avanços. Mas nunca escondeu que tinha lado e o seu lado era o da maioria desvalida.
A inscrição do nome de Miguel Arraes no Panteão da Pátria, como se vê, é uma ótima oportunidade para um bate-papo sereno com a história. Leva-nos a rememorar o que não pode nem deve ser esquecido. Faz-nos pensar quem somos e de que lado estamos. E decidir: nossa referência é Arraes ou aqueles que o cassaram e o mandaram para o exílio?
Quem honra a memória e se sente homenageado com a inscrição do nome de Arraes no Panteão da Pátria nunca ficará do lado do mais forte por ser mais forte.
Quem diz ter Arraes como referência não pode confraternizar com os algozes da democracia.

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