MIGUEL ARRAES E OS ALGOZES
DA DEMOCRACIA
Evaldo Costa é jornalista. Atua no
Recife/PE
“Meu mandato é inegociável. Existe até que
expire sua duração legal ou enquanto eu for vivo. Posso ser preso, mas não
deposto”, disse o então governador Miguel Arraes, em 1º de abril de 1964, a três coronéis e um
almirante que tentavam convencê-lo a renunciar ou a aceitar secretários
indicados pelos militares que derrubavam o governo João Goulart.
Tinha como testemunhas, além dos quatro
militares, o então superintendente da Sudene, Celso Furtado, o prefeito
Pelópidas Silveira, que seria preso no dia seguinte, e outras poucas pessoas. “Tenho oito filhos. Como iria olhar para
eles se aceitasse isso?” – perguntou?
Havia canhões posicionados contra o
Palácio, na Rua da Aurora e na própria Praça da República, desde a madrugada.
Consultado pelo comandante da Polícia Militar se deveria resistir militarmente,
foi claro: “Não! Desmobilize qualquer
aparato bélico. Não quero ver derramamento de sangue”.
Miguel Arraes saiu do Palácio em um fusca,
conduzido pelo amigo Waldir Ximenes, para a prisão em Fernando de Noronha e, no
segundo semestre do ano seguinte, deixou o país para quinze anos de exílio na
Argélia. Viveu até o risco da eliminação física, na própria Argélia, no bojo da
chamada Operação Condor.
Este episódio e suas prolongadas e penosas
consequências são costumeiramente apresentados como definidores da trajetória
política de Miguel Arraes que, se vivo fosse, faria 93 anos no dia 15 de
dezembro deste ano.
E é
por isso que foi homenageado, em 2018, com a inscrição do seu nome no Panteão
da Pátria, por decisão do Congresso Nacional e proposta do deputado Tadeu
Alencar.
Para que serve um panteão? Os Estados
Unidos têm zelo religioso pelos seus pais fundadores. Com isso, procuram
instituir padrão de conduta, modelos virtuosos, indicar exemplos a serem
seguidos.
E o que ensina a biografia de Miguel Arraes
de Alencar?
Que o cumprimento do dever não está
condicionado a contingências pessoais. Ofereceram a ele a continuação no cargo,
se aceitasse nomear secretários impostos (a maioria dos 22 governadores aceitou
esta fórmula). Recusou. Disseram que se, simplesmente, renunciasse seria
deixado em paz. Disse não e pagou o preço.
Que o que se diz por escrito ou em palanque
não pode ser mudado ao sabor das conveniências. Arraes tinha compromissos
claros com o povo pobre de Pernambuco e só não honrou quando foi impedido.
Na Prefeitura do Recife, realizou uma obra
social que ainda marca a paisagem da cidade. Como governador, garantiu a livre
organização dos trabalhadores e mediou o Acordo do Campo que, pela via do
entendimento, trouxe a zona da mata de Pernambuco da idade média para o século
XX.
Os valores de um homem público não podem ir
ganhando novas formas como nuvens ao vento.
No segundo e no terceiro governo pós-regime
militar, Arraes continuou fiel aos mais pobres.
E continuou construindo soluções para
problemas seculares.
Três quartos dos pernambucanos viviam nas
trevas. Os programas de eletrificação fizeram Pernambuco ser o primeiro estado
da federação a ter todos os domicílios, rurais inclusive, ligados à rede de
distribuição de energia. Independentemente da renda do morador.
Os programas de microcrédito mudaram muitas
vidas décadas antes de garantirem Prêmio Nobel na Ásia.
Que a coerência é necessária. Arraes era um
homem de esquerda que sempre foi capaz de dialogar e de encontrar espaços de
entendimento com quem pensava diferente dele. Nunca quis hegemonia absoluta.
Sempre foi capaz de fazer alianças que permitissem consolidar avanços. Mas
nunca escondeu que tinha lado e o seu lado era o da maioria desvalida.
A inscrição do nome de Miguel Arraes no
Panteão da Pátria, como se vê, é uma ótima oportunidade para um bate-papo
sereno com a história. Leva-nos a rememorar o que não pode nem deve ser
esquecido. Faz-nos pensar quem somos e de que lado estamos. E decidir: nossa
referência é Arraes ou aqueles que o cassaram e o mandaram para o exílio?
Quem honra a memória e se sente homenageado
com a inscrição do nome de Arraes no Panteão da Pátria nunca ficará do lado do
mais forte por ser mais forte.
Quem diz ter Arraes como referência não
pode confraternizar com os algozes da democracia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário