quarta-feira, 31 de julho de 2019

HUMANITAS Nº 86 - AGOSTO DE 2019 - PÁGINA 7


A POLÊMICA QUESTÃO DO VICE-REINO DO PRATA
Especial do Humanitas

As colônias espanholas fundadas na América foram congregadas em quatro grandes vice-reinos, para melhor serem administradas. Um desses vice-reinos, o do Prata, era constituído pelos seguintes países: Argentina, Uruguai, Paraguai e parte da Bolívia.
A língua, castelhana, a religião católica e a administração eram unificadas e uniformizadas, o que não impediu o surgimento de espírito regional diferentes e o predomínio de sentimentos regionalistas.
O surgimento de ditadores desejosos de unificação após a independência e as lutas partidárias pelo poder entre Buenos Aires e Montevidéu fomentaram franca oposição do Império do Brasil, que interveio nos países do Prata.
Havia naqueles países, dois partidos inimigos: o partido federalista, ou colorado, e o unitário, ou blanco, que discutiam sobre a organização interna sem chegarem a um acordo. 
A partir de 1828, o Uruguai iniciava sua vida de nação livre e organizava seu primeiro governo regular a cargo de Dom Frutuoso Rivera. Na Argentina o governo é derrubado e instaurada a anarquia, que a 6 de dezembro levaria ao poder, como ditador, o caudilho Dom Juan Manuel de Rosas, chefe do partido federalista, isto é, colorado, que desejava conquistar o Uruguai e, não viu com bons olhos a eleição de Rivera.
Para tanto, lança contra este, Dom Juan Antonio Lavalleja e Dom Manuel de Oribe, que promoveram numerosos levantes contra o governo oriental (uruguaio)...
Em combate com Oribe, Rivera é derrotado e Montevidéu é cercada. Rosas bloqueia o porto com a intenção de fazer a cidade se render pela fome.
Os fatos se sucedem alarmantes, o não reconhecimento do bloqueio portuário pelo recém-chegado ministro brasileiro, Cansanção de Sinimbu, a retirada dos navios franco-ingleses, as invasões de Oribe ao Rio Grande, roubando gado, ferindo e matando gaúchos levam a suspensão das relações entre Brasil e Uruguai no dia 30 de setembro de 1850. Era a guerra!
O Império brasileiro resolveu agir. Aproveitando-se do rompimento entre Rosas e seu aliado, Urquiza, governador de Entre-Rios, firmou com este chefe e com os de Corrientes e Uruguai, a 29 de maio de 1851, uma aliança defensiva e ofensiva. Em seguida, a 19 de junho inicia-se a travessia do Rio Uruguai e a 8 de outubro Oribe capitula sem combate.
Essa vitória faz com que 28 mil homens atacassem a Confederação Argentina em meados de 1852, travando a batalha decisiva a 3 de fevereiro em Monte Caseros, na qual tomaram parte quatro mil brasileiros, sob o comando do general Manoel Marques de Sousa, futuro conde de Porto Alegre.
Rosas foi inteiramente derrotado e teve de abandonar o governo de Buenos Aires, retirando-se para Londres, onde morreu, em 1877.
Somente a 25 de fevereiro é que foi organizado um novo governo.
Não cessaram, porém, as lutas com a derrota de Oribe e Rosas, pois durante muito tempo ainda, os dois partidos - blancocolorado – continuaram disputando o poder, e sempre de modo violento e sanguinário.
É eleito no Uruguai, para presidente, Dom Juan Francisco Giro, do partido blanco, porém não durou muito no governo.
Após um ano foi obrigado a fugir e para governar o país foi eleita uma junta de três membros: Dom Juan Antonio Lavalleja, Dom Frutuoso Rivera e Dom Venancio Flores, chefes dos colorados.
Após a morte dos dois primeiros, resta Venâncio Flores que não tem pulso para governar.
O governo seguinte, de Bernardo Berro, tenta a pacificação, mas sem muito sucesso.
Em abril de 1863, Dom Venancio Flores, refugiado na Argentina, com o apoio de Bartolomeu Mitre, presidente da Confederação Argentina, invade o Uruguai.
Novamente, invasões nas estâncias gaúchas e reclamações para que o Império do Brasil tomasse providências. 
Foi enviado José Antonio Saraiva a Montevidéu, que apresentou um ultimato ao presidente uruguaio, resultando no rompimento das relações entre Brasil e Uruguai, em 30 de agosto de 1864.
Em outubro, o almirante Tamandaré assina com Dom Venancio Flores o acordo secreto de Santa Lúcia e as tropas imperiais iniciam o processo de ocupação de Montevidéu, comandadas pelo marechal João Propício Mena Barreto. 
A 2 de fevereiro de 1865, rendia-se a fortaleza uruguaia, criando-se um Governo Provisório, dirigido por Dom Venancio Flores, sendo reconhecidas as reclamações brasileiras.

HUMANITAS Nº 86 - AGOSTO DE 2019 - PÁGINA 8

O DIA EM QUE A FRANÇA FICOU COBERTA DE SANGUE
Rafael Rocha é jornalista e editor deste Humanitas. Atua na cidade do Recife/PE

O massacre da noite de São Bartolomeu retrata as violentas guerras entre católicos e protestantes e ocorreu em Paris, no dia 24 de agosto de 1572.
No dia seguinte à matança, o papa Gregório XIII, feliz com a morte dos protestantes ordenou que fosse cantado em todas as igrejas da Europa, o Te Deum, hino de Louvor a Deus, por ter ajudado aos valentes e valiosos católicos, na vitória contra os heréticos inimigos da Igreja. Salientou, na ocasião, que graças a Deus, a humanidade estava sã e salva.
Nas primeiras horas da madrugada de 24 de agosto, dezenas de líderes huguenotes foram assassinados em Paris, numa série coordenada de ataques planejados pela família real francesa sob o comando da rainha consorte Catarina de Médici.
Mas o massacre foi muito mais vasto. Começou em 24 de agosto e durou até outubro, com uma onda organizada de assassinatos de protestantes nas mais diversas cidades francesas, como Bordéus, Bourges, Lyon, Orleans, Toulouse e Ruão.
De acordo com os relatos dos historiadores a quantidade de cadáveres arremessados no rio Sena e em outros rios franceses causou insalubridade e contaminação, e a população deixou de comer peixes e beber a água de muitos rios.
Este foi o pior dos massacres religiosos daquele século e levou às mentes dos protestantes a convicção de que o catolicismo era uma religião sanguinária e traiçoeira.
Dois dias antes do fatídico 24 de agosto de 1572, a rainha consorte Catarina de Médici, mãe do rei da França,e Carlos IX, tinha ordenado o assassinato do almirante Gaspard de Coligny, líder huguenote protestante, que ela acreditava estar levando seu filho a entrar em guerra contra a Espanha. O rei Carlos IX prometeu investigar o assassinato para aplacar os huguenotes enfurecidos.
A rainha Catarina então convenceu o rei que os huguenotes estavam à beira de uma rebelião e este autorizou o assassinato de seus líderes pelas autoridades católicas.
A maioria dos líderes huguenotes estava em Paris, celebrando o casamento de Henrique de Navarra (protestante) com a irmã do rei, Margarida de Valois (católica), casamento arranjado para que as duas facções declarassem a paz.
Quando o massacre começou, milhares de católicos parisienses aderiram a ele.
O rei Carlos XI emitiu depois uma ordem real, no dia 25 de agosto, para que o massacre fosse suspenso, mas seus pedidos foram ignorados.
As mortes continuaram até outubro, e se estima que entre 5 mil protestantes franceses foram mortos em Paris e até 30 mil em toda a França. Henrique de Navarra sobreviveu à noite de São Bartolomeu, mas teve de renegar a sua fé depois de ser encarcerado no Louvre.
Quatro anos mais tarde, ele conseguiu fugir, retornando a Navarra e alguns anos depois, subiu ao trono francês, após abjurar o protestantismo, tornando-se o rei Henrique IV. É dele a célebre frase: “Paris bem vale uma missa!”.
Henrique IV concedeu aos protestantes a igualdade de direitos políticos através do Édito de Nantes.
Como rei ele defendia a coesão do país: "A França não se dividirá em dois países, um huguenote e outro católico. Se não forem suficientes a razão e a Justiça, o rei jogará na balança o peso da sua autoridade." 
Foi assassinado por um fanático católico, François Ravaillac, em 14 de maio de 1610.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

HUMANITAS Nº 85 - JULHO DE 2019 - PRIMEIRA PÁGINA

  O primeiro artefato de voo livre
 foi inventado por um brasileiro

No dia 12 de novembro de 1906, em Paris, França, um objeto mais pesado que o ar alçou voo por si mesmo, sem necessidade de rampas de lançamento ou catapultação. O autor dessa façanha foi um mineiro de Palmira chamado Alberto Santos Dumont. Neste mês de julho ele é homenageado por este Humanitas pela passagem dos seus 146 anos de nascimento, ocorrido no dia 20 de julho de 1873 - PÁGINA 8 -
...............................................
Na PÁGINA 7, o Especial do Humanitas disserta sobre o
 fenômeno da globalização
.............................................
Veja na PÁGINA 6, o primeiro artigo do escritor Araken Vaz Galvão (BA) sobre o despertar da África
...............................................
Na PÁGINA 5, a escritora Divina de Jesus Scarpim (SP) apresenta a segunda parte do artigo sobre pessimismo e realidade
.................................................
Leia, na PÁGINA 4, o artigo “Deus, deuses, fé, superstição, astrologia, destino”
do escritor gaúcho Décio Schroeter

HUMANITAS Nº 85 - JULHO DE 2019 - PÁGINA 2

EDITORIAL
Fim do impresso

É com tristeza que comunicamos aos leitores que o Humanitas - em sua edição impressa - deixou de circular a partir do mês de junho.
Isso ocorreu devido à saída de muitos colaboradores que ajudavam financeiramente para que o jornal levasse seu grito e sua palavra humanista impressa em papel aos mais diversos leitores do Brasil e do mundo.
Das 15 (quinze) pessoas que ajudavam com a manutenção do jornal impresso, apenas seis permaneceram no front, até o último minuto, de armas em punho e na luta.
São elas: Francisco de Assis Coelho (Recife/PE), Antônio Carlos Gomes (Santos/SP), Sebastião Alves de Aquino (Recife/PE), Araken Vaz Galvão (Valença/BA), Maria Isabel Soares (Caruaru/PE), João Paudarco (Recife/PE). Esses colaboradores ficam a partir de hoje dispensados da colaboração financeira.
Com o aumento dos gastos com papel, tinta, impressão e correio se tornou inválido continuar com a publicação.
Aos colaboradores, nossos agradecimentos. Gostaríamos muito que o Humanitas impresso tivesse continuidade, mas já que se tornou impossível, ficaremos no blog pela internet: jornalhumanitas.blogspot.com.
Se existir possibilidade de retorno e mais ajuda financeira adequada para isso, voltaremos ao batente. No momento, porém, a realidade nua e crua é esta.
O jornal Humanitas impresso iria completar sete anos de existência no próximo mês de agosto de 2019.
......................................................
Uma carta fictícia e falsificada
Texto extraído da Internet

Públio Lentulus Cornélio é um personagem histórico fictício. 
A ele se atribui uma carta dirigida ao Senado e ao povo romano, que cita a existência de Jesus Cristo e que fornece pormenores  de seu aspecto físico e de suas qualidades morais, terminando com a afirmação de que esse personagem era ‘o mais formoso dos homens’.  
A origem de tal documento é desconhecida. O certo é que foi impresso pela primeira vez na Vita Christi de Ludolfo, o Cartuxo (Colônia, 1474), e, pela segunda vez, na introdução às obras de Santo Anselmo, em Nuremberg, 1491.
Naqueles tempos se falsificavam e inventavam histórias religiosas as mais diversas e quem fazia isso tinha o apoio dos reis da época. Tudo para dominar melhor a plebe.
A Enciclopédia Católica considera o relato uma ficção. Historiadores dizem que nunca existiu um regente de Jerusalém, nem nenhum procurador de nome Lentulus, na Judeia.
Ademais, um "regente" romano não se dirigiria ao Senado, mas ao Imperador, e nenhum escritor romano usaria as frases tipicamente hebraicas "profeta da verdade" e "filhos dos homens", ou o título "Jesus Cristo", típico dos evangelhos.
A transmissão do documento foi fragmentada e diversos autores lhes impuseram seus estilos, além da interpolação de diversos fragmentos com origens diferentes.
Tais descrições não foram feitas pelo fictício Públio Lentulus Cornélio, e sim anos depois da dita morte do Cristo, por Gamaliel: "O seu rosto é cheio, o aspecto é muito sereno, [...] [muito parecido com sua mãe, que é de peregrina beleza, uma das belas mulheres da Palestina]."
E São João Damasceno: "Jesus, que pelo povo é inculcado o profeta da verdade; e os seus discípulos dizem que é filho de Deus, criador do céu e da terra e de todas coisas que nela se acham ou, que nela tenham estado; em verdade, ó César, cada dia se ouvem coisas maravilhosas deste Jesus: ressuscita os mortos, cura os enfermos..."
Nenhum dos dois viram o rosto desse suposto filho de um deus.
E não custa lembrar aqui que o cristianismo foi responsável pela tentativa da destruição de todas as religiões do mundo, não admitindo dissidências. 
Criou basicamente uma cruel ditadura religiosa e se impôs pela violência, matando impiedosamente todos aqueles que se opunham a aceitá-lo. Foram mais de dois mil anos de crimes, terror e repressão. A aceitação do cristianismo ocorreu através do medo. Mergulhou toda a Europa em uma profunda recessão que durou mil anos, conhecida como Período das Trevas, e até hoje continua sendo intolerante e contra o desenvolvimento e o progresso da ciência.

HUMANITAS Nº 85 - JULHO DE 2019 - PÁGINA 3

Refúgio Poético – Cartas dos Leitores

Soneto
Geir Campos
1924/1999

Talvez não venham a saber jamais
quanto de mim em ti carregas quando
vais ter com ela e fico só pensando
no que costuma haver entre os casais:

em pensamento vou a quanto vais
e quando a olhas eu a estou olhando
e quando a tocas eu a estou tocando
e teus genitais são meus genitais...

Quando chegas alfim de estar com ela
vejo teus olhos e ouço os olhos dela
dizendo coisas que ela a mim não diz:

vens leve e é também minha essa leveza
- e a alegria que em mim acham acesa
é mais um jeito meu de ser feliz.

Geir Nuffer Campos foi um poeta, escritor, jornalista e tradutor brasileiro
......................
Albatroz
Charles Baudelaire

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

Charles-Pierre Baudelaire foi um poeta francês. É considerado um dos precursores do simbolismo.
...........................
Oito
Cecília Meireles
Rio de Janeiro/RJ
1901/1964

Ó linguagem de palavras
longas e desnecessárias!
Ó tempo lento
de malbaratado vento
nessas desordens amargas
do pensamento…

Vou-me pelas altas nuvens
onde os momentos se fundem
numa serena
ausência feliz e plena,
liso campo sem paludes
de febre ou pena.

Por adeuses, por suspiros,
no território dos mitos,
fica a memória
mirando a forma ilusória
dos precipícios
da humana e mortal história.

E agora podeis tratar-me
como quiserdes – que é tarde,
que a minha vida,
de chegada e de partida,
volta ao rodízio dos ares,
sem despedida.

Por mais que seja querida,
há menos felicidade
na volta do que na ida.

Cecília Benevides de Carvalho Meireles, foi uma jornalista, pintora, poeta e professora brasileira.
..........................................
CARTAS DOS LEITORES

Lamentável o fim do Humanitas impresso. Mas breve cruzaremos novamente nossas "literaturas". Estamos apenas "de férias". Ana Maria Leandro – Belo Horizonte/MG

HUMANITAS Nº 85 - JULHO DE 2019 - PÁGINA 4


Deus, deuses, fé, superstição, astrologia, destino
Décio Schroeter colaborador deste  Humanitas é escritor. Atua em Porto Alegre/RS

Superstição!
Que palavra estranha essa!
Se a gente acredita no bom Deus, isso se chama ter “fé”.
Mas se a gente acredita em astrologia, ou sexta-feira 13, o nome muda para superstição!
As doenças são castigos dos deuses?
Será que alguém acredita nisso hoje em dia?
Muitas pessoas ainda consideram doenças, como a AIDS, um castigo de Deus.
Ora, isso significa que, para elas, deve haver um dedo de Deus na decisão sobre quem deve adoecer e quem deve continuar sadio.
Se fosse Deus, forças místicas ou o destino, as pessoas não teriam livre-arbítrio.
Não acreditamos que uma pessoa enferma possa ser curada por meios sobrenaturais.
Não acreditamos na interferência de forças espirituais sobre a vida.
Assim, não acreditamos que o homem tenha uma alma imortal.
Para Richard Sloan, pesquisador de medicina comportamental na Universidade de Columbia (EUA), as revistas científicas deveriam recusar esses estudos porque eles são uma afronta à ética da ciência médica. "Não há nenhuma evidência de que a fé faz bem à saúde", afirmou ele. "A maioria desses pesquisadores está interessada em promover alguma religião."
Sloan, que é autor do livro Blind Faith: The Unholy Alliance of Religion and Medicine (Fé Cega: A aliança profana entre religião e medicina), disse que existem pesquisas sérias confirmando que pessoas otimistas enfrentam melhor a adversidade de uma doença, mas isso, não tem a ver com a fé em um deus.
Um otimista pode ser religioso ou não.
Sloan também afirmou que os estudos que ligam crença e saúde podem apresentar um efeito perverso porque a pessoa poderá se sentir culpada por achar que não teve fé suficiente para evitar uma doença.
"Ficar doente já é ruim. E fica pior se a doença vem acompanhada pelo peso na consciência por não ter sido crente o suficiente."
Falou que muitos desses estudos são feitos de modo a dar credibilidade a algumas crenças. Amostras de pesquisa são pequenas e dados importantes são ignorados ou deturpados.
Vivemos uma boa vida (Carpe diem) porque nos libertamos do medo da morte.
Não precisamos mais temer os deuses e nos preocupar com a morte.
. É fácil alcançar o bem. É mais fácil suportar o que nos amedrontava.
Ou seja, vivemos o momento, não acreditamos na ressurreição da carne, imortalidade da alma e na vida eterna.
 Portanto, ser ateu e sem religião não é negar a maravilha, o grandioso, o magnífico.
É dizer adeus ao cristianismo.
É simplesmente não precisar de explicações com base na “fé cega” para algo que carregamos.
Se deus(es) existem, ou ele ou ela não pode fazer nada para impedir as mais terríveis calamidades, ou então ele é impotente, ou então é mau.
E, ainda, qualquer deus que se preocupe com coisas tão triviais como o casamento gay, ou o nome pelo qual ele é chamado nas orações, não é tão inescrutável assim.
Os ateus consideram outra possibilidade, claro, que é ao mesmo tempo mais razoável e a menos odiosa: o deus bíblico é uma ficção, tal como Zeus e milhares de outros deuses mortos que a maioria dos seres humanos mentalmente sãos hoje ignora.
E quando você argumenta que seu deus é verdadeiro, aí toda a sua tese desmorona, porque cada cultura tem uma inspiração divina que aponta para uma dimensão mágica diferente, governada por um criador do universo diferente.
Para o seu deus existir, todos os outros precisariam existir também.
Não há porque considerar apenas o “seu” como o deus verdadeiro.

HUMANITAS Nº 85 - JULHO DE 2019 - PÁGINA 5

Pessimismo e realidade (Parte 2)
Divina Scarpim colaboradora deste Humanitas é professora e escritora. Atua em São Paulo/SP

Não é fácil, seguramente não é fácil ser otimista quando vemos o quanto a maioria das pessoas está sempre disposta a aderir, a defender e a lutar por qualquer ideia que a favoreça, seja como indivíduo seja como grupo.
Principalmente como grupo, porque além do sentimento de superioridade individual há sempre a valiosíssima sensação de pertencimento, de acolhimento, de ser “parte de algo maior”, por mais que esse “maior” seja um mito, uma invenção, uma mentira, uma fraude.
Para se sentirem privilegiados, superiores, melhores e mais dignos do que todos os demais, pessoas e grupos são capazes de acreditar em qualquer mentira confortável, não só se recusam a usar a razão naquele quesito como chegam a hostilizar - a ponto de usar a violência mais letal - qualquer um que tente quebrar ou expor essa mentira.
Quase todos os discursos que defendem algum tipo de superioridade de um determinado grupo sobre outro está usando a primeira pessoa, do plural ou do singular.
“Eu” sou sempre um membro do grupo que defendo como aquele que tem direitos “inalienáveis”, “justificados”, “sagrados”, “históricos” e “ele” é sempre um membro do grupo que deve se curvar diante da minha superioridade.
Claro que, como sou inteligente, muitas vezes consigo camuflar meu discurso de forma que a dicotomia eu/ele não fique tão clara.
E posso até, porque está claro que sou superior, conseguir que “ele” se convença de que meu discurso é impessoal e isento.
Posso até mesmo conseguir que um ou outro “ele” reproduza meu discurso, se convença e convença outros “eles” a se colocarem sob a minha “proteção”.
Afinal, eu sou mais inteligente!
No livro Sapiens - páginas 147-148 - ficamos sabendo que as razões que levaram os europeus que colonizaram as Américas a escravizarem os africanos em lugar dos europeus do leste ou dos asiáticos não tiveram nada a ver com inferioridade biológica dos negros ou maldição bíblica.
De acordo com o livro, três fatores os levaram a optar pelos africanos: a menor distância da América, o fato de já existir um comércio do tipo para o Oriente Médio e a maior resistência dos africanos às doenças tropicais, afinal, transportar pessoas que morreriam de malária antes de dar lucro não era interessante.
Ou seja, basicamente, a escolha teve como razão o que costuma ser a razão maior na criação de todo e qualquer mito, mentira ou tabu: Dinheiro e poder.
Todas as demais “razões” são habilmente criadas e divulgadas depois e, como disse Joseph Goebbels, uma mentira contada muitas vezes se transforma em uma verdade.
A mentira que cria e sustenta o preconceito se entranha de tal forma que continua sendo “verdade” para muitas pessoas e grupos e, em muitos aspectos continua determinando a estrutura de uma sociedade, mesmo depois de anos, décadas ou até séculos de acúmulo de evidências e provas de que acreditou em mentiras.
Ainda existem nazistas, ainda existem racistas, ao que parece ainda existem parsis e ainda existem pessoas e grupos que defendem a “verdade” irracional que justifica seus preconceitos com a violência mais brutal.
Aparentemente não há racionalidade que possa superar o prazer estúpido e animalesco de se sentir superior e de ser parte de um grupo privilegiado.
O animal que somos continua sendo o animal que mata e extermina em nome da sua alegada e nunca comprovada superioridade.
Isso é verdade para a mentira de que “Os arianos são superiores e os judeus são a escória que deve ser eliminada”, é verdade para “Os negros nasceram para serem escravos, é da natureza deles” e, pelo que diz a personagem Aban na página 175 de outro livro que estou lendo, A distância entre nós, de Thrity Umrigar: “Esses ghatis são sempre ghatis. Nós, parsis, somos os únicos que tratam as empregadas como rainhas. E sempre recebemos o troco”, é verdade para os herdeiros das antigas castas superiores indianas.
Nesse capítulo do livro, no qual outros personagens justificam e defendem estupidamente a ideia da supremacia parsi e da inferioridade dos não parsis, o que me pareceu emblemático foi que a mulher que se coloca contra todo o discurso preconceituoso está defendendo uma empregada que ela mesma não permite sequer que se sente em uma cadeira de sua casa.
Para mim, essa personagem mostrou de forma muito eficiente a dificuldade que até mesmo as pessoas mais cultas, esclarecidas e sensíveis têm de se livrarem do preconceito internalizado em sua educação e sua cultura.