O neurocirurgião que acha que
não
precisa do seu córtex cerebral
Texto extraído de http://www.suzanaherculanohouzel.com/
Especial para o
Humanitas
Suzana Herculano-Houzel é uma neurocientista
brasileira. Atua no Rio de Janeiro/RJ
O neurocirurgião norte-americano Eben Alexander III,
acometido de uma meningite bacteriana, passou uma semana em coma, quase morreu.
Mas ficou para a contar a história de suas experiências
extracorporais durante o coma, no livro “Uma Prova do Céu”.
O pequeno detalhe, que o colocou no programa Fantástico da TV Globo, e na lista dos livros mais vendidos, é que ele,
convencido de que seu córtex cerebral estava “inoperante” durante a
semana de experiências em coma, concluiu que “o cérebro não é necessário
para a consciência”.
Eu li o livro todo (sou responsável pela revisão técnica da
edição brasileira) e acho o relato dele muito interessante, importante, digno
de livro e público - mas a interpretação dele é toda dependente de uma falácia
gigantesca, enorme, colossal: a de que o “córtex dele estava morto” -
como é que ele diz, mesmo? Silenciado, inoperante.
O problema é que ele não oferece “NENHUMA EVIDÊNCIA”
no livro de que o córtex cerebral dele esteve de fato inoperante durante o
coma. Não há qualquer menção a um “EEG”, por exemplo, que seria trivial
de fazer, ou qualquer outro teste para avaliar o funcionamento de seu córtex
enquanto sua mente vagava pelo “céu”.
O neurocirurgião simplesmente presume que, como estava em
coma infeccioso, seu córtex estava “inoperante” - e que por isso suas
experiências mentais durante o coma seriam “prova de que o córtex não é
necessário para a consciência”.
Ao contrário da sua conclusão sem qualquer base,
comprovação ou fundamentação lógica, a explicação mais fácil e simples para
tudo o que ele descreve é que justamente o córtex cerebral dele esteve, sim,
funcional durante o coma, ainda que de maneira capenga e certamente prejudicada
pela meningite - o que explicaria todas as experiências durante o coma.
Não tenho qualquer ressalva a fazer a respeito das
experiências que ele descreve. Acho importante sabermos que é possível haver
experiências mentais durante um coma, sobretudo dado que hoje é conhecido que o
coma não é uma coisa só, mas um estado temporário que pode ter origens e causas
diversas, inclusive ainda com atividade cortical (há vários estudos a respeito
- entrem no PubMed e busquem-nas).
Não há nada no livro que comprove que o Dr. Alexander tenha
ou não tido contato com “o além”, mas esse não é o ponto importante
aqui. Algumas pessoas gostarão da história e se identificarão com ela, o que é
ótimo.
O problema, que fere todas as iniciativas de divulgação e
educação do público sobre a neurociência, é que o autor joga qualquer espírito
científico para o alto ao escolher forçar a mão e usar sua “autoridade de
neurocirurgião” para concluir, sem qualquer evidência que sim ou que não,
que seu córtex cerebral estava “completamente inoperante”, e portanto
que o cérebro não é necessário para a consciência.
Se esse cirurgião tivesse recebido um pingo de formação em
ciência, ele teria exigido de si mesmo algum teste de suas funções corticais
antes de sair espalhando aos quatro ventos que tem a “prova científica”
de que (1) “o céu existe” e
(2) “a consciência não depende do
córtex cerebral”.
Para ficar claro: depende, sim. Ou anestésicos que
modificam a atividade do cérebro não seriam anestésicos. Ou a falta de oxigênio
não levaria ao desmaio. Ou lesões do cérebro não teriam consequências imediatas
e graves para a atividade mental.
Ou o neurocirurgião não teria sequer entrado em coma por
conta de sua meningite... Por fim: você aceitaria ter seu cérebro operado por
um neurocirurgião que está agora convencido de que seu córtex pode ser
danificado, ou mesmo totalmente lesionado, sem nenhuma consequência, porque ele
“não é necessário para a consciência”? Eu certamente não!
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PS. Se vocês
olharem o expediente da edição brasileira da Sextante, verão meu nome como revisora técnica do livro. Por que
aceitei fazer a revisão, se tenho essa crítica gigantesca ao livro? Aceitei
porque acredito na liberdade de opinião e sei que muitas pessoas gostariam de
ler a história desse neurocirurgião que agora acha que não precisa do seu
córtex para ter consciência. Então quis contribuir para que a história
chegasse até os leitores sem problemas técnicos na tradução. Só isso.
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NOTA DO EDITOR
Uma rede de TV brasileira exibiu algo sobre “vida após a morte”, focando o
tema com as ideias do neurocirurgião Eben Alexander III, cujo livro sobre sua
experiência de “quase morte”,
lançado em 7 de outubro de 2014, se tornou best-seller. Na sua fanfarronice o autor do livro diz que
morreu, foi ao céu, viu os anjos e depois ressuscitou. O neurocirurgião ainda
vai mais longe: faz pregação, fala em demônios, paraíso, e se mete no espaço e
na física quântica, com descabidas divagações. O livro do Dr. Eben Alexander
III é intitulado “Proof of Heaven: A
Neurosurgeon's Journey into the Afterlif”" - ou “Provas
da Existência do Paraíso: A Jornada de um Neurocirurgião na Vida Após a Morte”. Esta sandice foi refutada pelo sério neurologista e escritor anglo-americano Oliver Wolf Sacks, renomado
professor de neurologia e psiquiatria na Universidade de Columbia; assim como
por Sam Harris, filósofo e neurocientista americano e
pela comunidade científica. Mas o cara continua faturando em cima de um rebanho
de ovelhas ingênuas e vulneráveis que, iludidas, esperam pelo que chamam de Boa
Nova.
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