sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

HUMANITAS Nº 54 – DEZEMBRO 2016 –PÁGINA 4

Um pouco de cinema
- John Ford -

Especial para o Humanitas

Araken Vaz Galvão é escritor e membro da Academia de Artes do Recôncavo. Mora em Valença/BA

Muitos dizem que o chamado western “psicológico” nasce com “No Tempo das Diligências” (Stagecoach - 1939). Sabemos, porém, que há antecedentes. Entretanto, se aceitarmos tal como verdadeiro – pois não há dúvida que esse filme não só consagrou o gênero, como também fixou o estilo – teremos que identificar o por quê dessa afirmativa.
É verdade que, antes desse filme, o western, chamado “primitivo”, limitava-se, sobretudo, em contar uma história, geralmente divertida, com assaltos a trens, a bancos ou a diligências, de forma esquemática e eficaz, sempre explorando os mitos, histórias e personagens do Oeste ou Velho Oeste, como foi chamado, pelos americanos – sempre tão orgulhosos e jactanciosos – como se nos estivessem lembrando: “Essas coisas hoje pertencem ao passado, são simplesmente lendas. Já não somos mais assim”.
Há que se registrar ainda que em alguns casos da filmografia de Ford aparecem – além do toque melodramático – loas ao Exército e à sua cavalaria, esplendidamente exposta na sua “Trilogia da Cavalaria” (“Sangue de Herói”, 1948; ”Legião Invencível”, 1949; “Rio Bravo”, 1950); racismo em relação aos índios e, sempre, em relação aos mexicanos e mestiços (“Sangue de Herói” e “Rastros de Ódio”); criticas à estupidez inerente ao militarismo (“Sangue de Herói”); propaganda sutil ao espírito do “New Deal” e preocupações sociais (“No Tempo das Diligências”). E, até, uma bela epopeia sobre os antes execrados índios (“Crepúsculo de uma Raça’); retrato pungente da solidão humana (“Rastros de Ódio” e “O Homem que Matou o Facínora”).
Ford fez ainda outras apologias ao heroísmo da cavalaria, como foi o caso de “Marcha de Heróis”, 1959. Neste filme, onde há uma sequência memorável – a do ataque do batalhão de criança – o inimigo não é mais os selvagens peles-vermelhas, e sim os irmãos do Sul (ou melhor, os filhos dos irmãos do Sul), cujo heroísmo é empregado para defender uma causa, no mínimo, equivocada: a escravidão dos negros.
Sobre esse brilhante diretor e as voltas que dá o seu pensamento político-social, as idas e vindas da sua concepção “ideológica”, já presente em “No Tempo das Diligências”, fica bem mais pronunciado em “As Vinhas da Ira” (The Grapes of Wrath), 1940 – que já tinha despontado, de forma um tanto quanto tênue, em “O Delator” (The Informer), 1935.
Porém, essas guinadas de pensamento político – sempre presente em seus filmes, como sucede, via de regra, com quase todos os diretores americanos – não deve ser coisa de espantar, pois se tratava, e ainda se trata, de uma regra, jamais de uma exceção. Nos Estados Unidos – é bom realçar – cinema e divulgação do “American way of life” sempre se confundiram. Por isso é que me parece risível, para não dizer farisaísmo, quando acusavam os diretores soviéticos de terem feito propaganda do comunismo.
Mas, voltando a Ford e aos seus westerns, cabe registrar algo do que consta em um fascículo que acompanhou a coleção de vídeo “Os Clássicos do Cinema”, que a Edições Alfaya, de Barcelona, Espanha, fez distribuir no Brasil.
O fascículo a que nos reportamos é o de número 4, que acompanhou o vídeo de “No Tempo das Diligências”, onde são dadas algumas informações sobre a aventura do “rapaz Ringo” (Ringo Kid) e seus companheiros de viagem na diligência que serve ao título.
Por esse fascículo ficamos sabendo que esse trabalho de Ford foi contemporâneo de lançamento de grandes títulos da época, entre outros, “A Mulher Faz o Homem” – (Mr. Smith Góes to Washington) de Frank Capra; de “O Mágico de Oz” (The Wizar of Oz) de Victor Fleming; de “Ninotchka” – idem – de Ernest Lubitsch; “E O Vento Levou” (Gone With the Wind).
Concorrendo com todos esses filmes “No Tempo das Diligências” ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante, Thomas Mitchell – o mesmo que faria o papel do pai de Scarlett O’Hara em “E o Vento Levou”  – e de melhor trilha sonora – adaptação de 17 canções populares da fronteira americana. O elenco é dos melhores, Claire Trevor, John Wayne – bem jovem – John Carradine, Andy Devine, Donald Meek, Louise Platt, George Bancroft e Berton Churchill, além do premiado Thomas Mitchell, todos em boas apresentações.
O filme, mesmo com suas preocupações sociais, dentro do espírito do “New Deal”, não se exime de retratar seus clichês contra os índios e contra os mexicanos. Aliás, o cinema americano está repleto desses clichês, os quais são, em última análise, o retrato vivo do chauvinismo e da arrogância deles.
Entretanto, e apesar de Ford ter sido um dos maiores diretores do cinema americano e, sem dúvida, o mestre incontestável do western, não podemos ocultar ou excluir o caráter francamente propagandista de sua obra.
Utilizando-se de uma linguagem soberba, ou seja, fazendo uso de seu inegável talento, Ford – junto com Frank Capra – foi o diretor que mais exaltou o modo de vida americano. E com tal maestria que nos fez admirar uma política que só trouxe mazelas aos povos mais pobres do mundo.

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