terça-feira, 30 de setembro de 2014

HUMANITAS Nº 28 - OUTUBRO 2014 - PÁGINA 7

Ditadura civil militar: a ditadura de todos
Sérgio Castro – Salvador/BA

Foram necessários 50 anos para que se aceitasse: não houve ditadura militar no Brasil. Ela foi civil e militar, associação de elites, paisanos e gorilas, representando os interesses das elites. Valerá a pena refletir mais um pouco e descobriremos que a ditadura foi a “opção democrática” de grande parte dos brasileiros.
O livro “Piracicaba 1964 – o golpe militar no interior” é uma coletânea de artigos que relata, não o golpe militar, mas o que foi a ditadura numa cidade de tamanho médio (algo como 100 mil habitantes), no interior de São Paulo. Tema que é tratado pela primeira vez, pondo em evidência o que aconteceu de fato por todo o Brasil: não em São Paulo, ou no Rio de Janeiro, ou em Brasília.
Um retrato que surpreende, ao evidenciar o que todos podíamos saber:
Em Piracicaba houve resistência, especialmente por parte dos estudantes, professores e alguns jornalistas. Existiram e foram perseguidos vários “subversivos”, a cidade abrigou congressos da UNE. Houve um prefeito que desafiou o DOPS e os militares.
Tudo começou com uma grande marcha da família, inspirada no ideário de 1932, liderada pelas mulheres sérias das boas famílias, apoiadas pelos padres, Igreja, jornais, clubes e colégios, usineiros. profissionais liberais, comerciários e bancários.
Pouco tempo depois surgiria a minoria descontente.
Na cidade do interior não se joga o jogo das altas cavalariças, não se discute sobre o nome do próximo general a assumir o comando da guarda.
Mas fica evidente a conveniência em aceitar-se o papel de “vivandeira de quartel”: o poder da força absoluta serve à solução mais conveniente nas disputas menores, que cabem nos limites do município.
Os oficiais militares (de pequeno escalão, tenentes e capitães) são exaltados e buscados, para que se lambam as suas botas. Rapidamente aprende-se a transformar a fofoca em delação.
O que mudou a partir de 1985? Tudo aquilo que não era mais necessário, pois que os reais objetivos de 1964 já tinham sido alcançados e estavam consolidados. Piracicaba acomodou-se.
Completou 12 anos de administração pública feita por um só partido político.
Sabe da conveniência de manter-se a “política” que o velho e arcaico adhemarismo praticou ainda nos anos das décadas de 1940 e 1950
A ditadura foi o regime brando, de violências menores e que não se pretende punir (não devem ser punidas). Os ares são os mesmos: os que as queimadas promovidas pelos donos dos canaviais distribuem de forma equânime, os que, antes disso, mataram o rio Piracicaba, despejando nele o restilo pestilento, cheiro adocicado da podridão.
Abrindo o livro, o ensaio de Orlando Guimaro Júnior (“Porque a base do Direito é a força”) convida a reconhecer o óbvio:
“Quando o último corpo de desaparecido político for encontrado, ou quando forem fornecidas indicações seguras de sua localização ou de seu destino; quando o último torturador, assassino ou agente da repressão que tenha cometido ou colaborado na prática de atrocidades seja identificado e preste contas de seus atos, finalmente o Brasil poderá se considerar em paz com o seu passado, como uma nação que respeita os seus cidadãos, que respeita a pessoa humana.”
Ora, dentro de algum tempo a Comissão Nacional da Verdade encerrará seus trabalhos.
E ficará evidente que o Brasil está em paz com o seu passado, posto que ele foi o fruto desejado pelos brasileiros, a ditadura que, exatamente, desrespeitando a cidadania, existe para zelar pelos interesses; que, no silêncio das censuras, é bem recebida pelas elites e aceita pela maioria do povo brasileiro, que se alegra pela felicidade despudorada de quem se acha dono do poder.

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