Nem te conto dos cinquenta contos
Ana
Maria Leandro
Belo
Horizonte/MG
Acordo assustada com a campainha do telefone fixo ao meu
lado no criado mudo e atendo rápido. Do outro lado Lourdes grita: “Oi, sou eu... A Lourdes...”
Recém-acordada não me vem à lembrança de quem é este nome.
E pergunto: “Lourdes?!!!...” Ela retruca: “Sim, a Lourdes, vendedora de balas do ponto
de ônibus... Queria lhe contar dos cinquenta contos”... Bom, agora tudo se
embolou de vez, pensei...
Digo a mim mesma: “Ana, acalme-se, logo tudo se explica”.
Retorno ao diálogo: “Lourdes, por que mesmo você está me telefonando?
Desculpe-me, acordei agora, não estou entendendo”. Ela aumenta a voz, como se
meu “não entender” fosse “não escutar”. Continuo mais atenta para compreender.
E pergunto: “Que cinquenta contos?!... “Ora, os cinqüenta contos, que você me arranjou, quando vim morar na
praia...” Faço um esforço para acordar de vez e lembrar, quem era Lourdes
para quem eu arranjei “cinquenta contos”. Não pensei que ainda existisse quem
diga “contos” e não reais.
Como a conversa
estava interessante (o que é que alguém faz com “cinquenta contos”?), resolvi
me esforçar para me lembrar. Lourdes, agora eu me lembrava, era uma senhorinha
que vendia balas no ponto de ônibus perto da minha casa.
Como todos sabem,
ando mais de ônibus. E Lourdes me contou que era louca para arranjar um
“carrinho que fecha”, como dizia ela, para deixar nele as sacolas pesadas
de balinhas e biscoitinhos, que ela trazia de casa (da qual ela vinha a pé),
para vender no ponto do ônibus.
Esforcei-me para conseguir para ela a doação do tal veículo
(um pequeno "trailer"), junto ao empresariado local. Não consegui.
Por fim, um dia no ponto ela me contou que estava com vontade de ir fazer seu
comércio na praia de Itaoca, no Espírito Santo. Morava lá uma irmã, com a qual
a princípio ela poderia ficar. Colaborei com “cinquenta contos” para a
ida. Ela disse que tinha o resto da passagem.
Eis que nesta manhã meio nublada e de chuviscos, ela está
em BH (veio visitar o filho maior de idade, menos “aventureiro” que ela, e que
aqui ficou). Está me ligando porque quer me contar sua saga: arranjou um
“namorado/encostado” (ou seja, ele tem uma renda fixa. Mesmo de salário mínino,
assim é mais seguro de partir para o desconhecido...).
Conta e reconta que está “um sucesso” sua vendinha na
praia. E ela continua pródiga como sua história:
“Acabei não precisando gastar os cinquenta
contos com a passagem, pois meu parceiro pagou a viagem de ônibus prá nós
dois”.
“Chegando aqui comprei farinha, óleo e até um pouco de carne moída para
recheio, para fazer e vender na praia um pastelzinho que todo mundo adora.
Assim eu comecei.”
“Com o dinheiro das vendas, fui comprando mais material e fazendo mais
sucesso com mais pasteizinhos".
Explica ainda que está morando num barracãozinho na praia,
que o companheiro arranjou para comprar por uma “bagatela” e que estão pagando
aos poucos. Com as vendas, dá para “ir vivendo” e ele ajuda nas vendas.
Incansável, ela continua:
“O barraco não é na beira da praia (diz com
simplicidade), é preciso dar uma boa caminhada até lá. Mas passa muita gente
pelo caminho e meus pasteizinhos estão dando muito mais do que as balinhas no
ponto do ônibus”.
E arremata com uma “ponta de orgulho” no convite: “Quando vierem ao Espírito Santo, se
quiserem, você e seu marido podem até ficar no meu barraco. É um cômodo só, mas
a gente divide com uma cortininha...”
Eu (que não perco o jeito de estimular sonhadores e
empreendedores):
“Danadinha você, Lourdes... Vai acabar tendo um hotel na praia...”
Ela ri orgulhosa. E concluiu: “É... E
comecei com cinquenta contos”...
Quem for a Itaoca/ES, faça o favor de ir
experimentar os pasteizinhos da Lourdes... Sei que são deliciosos, embora ainda
não os tenha degustado... É que eles têm "gosto de vida".
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