Texto de Genésio
Linhares – Professor/MS – Recife/PE
Publicado no
HUMANITAS nº 18 – Janeiro/2014
Temos consciência que neste mundo nunca
houve e nem haverá sociedade civilizatória perfeita e plenamente ética
Por mais que o ser humano declare querer a
verdade e viver na realidade, ele não consegue perdurar apenas nessas
dimensões. Ele termina escapando para o fingimento, para os subterfúgios, pois
a dureza e intensidade destes aspectos o impedem, de certa forma, de
enfrentá-la para si mesmo e para a sua convivência social. É óbvio que existem
as exceções, mas o preço que se paga é o isolamento, a distância dos outros, a
marginalização e a indiferença. Por outro lado, não estamos aqui, a defender, o
mascaramento, o fingir e a hipocrisia. É um fenômeno humano presente em todas
as sociedades. Em umas muito mais do que em outras. Porém, é uma constatação
indubitável.
Sendo assim, o ser humano em geral, sem
exceção, encontra no mundo da arte uma forma de terapia e salvação, deveras
eficaz ante o paradoxo que angustia, incomoda, muitas vezes é trágica e quando
não, adoece corpo e mente. Para quem é produtor e criador da arte é a
realização e o externar-se de seu ser e de sua concepção de mundo. Mesmo que
seja um realizar-se sempre incompleto, desejoso de criar sempre mais e mais.
Importando em maior grau a sensibilidade estética a ser transmitida do que
mesmo as preocupações com a verdade e lições de moral. Apesar de que, quando o
artista desmascara certas hipocrisias, termina como sempre, chocando os seus
admiradores.
Aos que apenas a contemplam há uma
necessidade de estar constantemente buscando novas obras de arte. E por que não
conseguimos viver sem ela? Por que ela fascina a todos, sem exceção?
Provavelmente pelos mesmos motivos. A arte é terapêutica e salvífica de modo
universal, seja para o criador, seja para quem apenas a contempla. O próprio
Aristóteles reconheceu, na obra “Arte
Poética”, o efeito catártico do poético.
Em outros termos, a arte purifica, alivia,
salva o seu fruidor da dureza e crueza da realidade, da vida com seus árduos
conflitos e dramas, tragédias, imediatez e mediocridade imperante, trazendo um
pouco de leveza ao nosso ser. Uma vez que no mundo da ficção as facetas
humanas, da racionalidade aos instintos mais selvagens, estão no nível da
representatividade. Sabemos que, em muitos casos, a ficção transforma-se em realidade.
Quando isto ocorre, a dor, o sofrimento individual e coletivo é incomensurável.
Sentimo-nos inferiores, frágeis, em muitos casos bárbaros, pois nos deparamos
com a face feroz e animal que há em nós. Este lado obscuro é deplorável,
desprezível, mas está em nós.
Estamos constantemente nos debatendo contra
ações dessa natureza. No entanto, por que atos antiéticos de violência, de
injustiças, de desvios de verbas públicas e corrupções, de atitudes
anti-humanas acontecem com tanta frequência no dia a dia em diversas
sociedades? Em países onde o estado faz cumprir suas leis, tais feitos ocorrem,
porém, a punição é efetiva. Não significando que a natureza humana tornou-se
melhor.
A presença do estado ainda é necessária
para coibir atrocidades, ganâncias e egoísmos desenfreados e desumanos como
diria o filósofo inglês Thomas Hobbes.
Agora, investir na boa educação e formação
elevada, na cultura autóctone e na arte dos cidadãos são caminhos para que os
próprios passem a ter maior controle desses aspectos negativos. Temos
consciência que neste mundo nunca houve e nem haverá sociedade civilizatória
perfeita e plenamente ética, entretanto, as lições do velho Platão na sua “República” ainda encontram ressonância e validade para nós quando afirma
categoricamente que o bem e o belo, no ápice do mundo ideal, devem ser
paradigmas e modelos de referências fundamentais a serem permanentemente
perseguidos aqui, em nosso mundo.
Entretanto, tal mundo encontra-se perdido
nas ilusões dos espetáculos de massa, nas aparências e vazias ideologias sem os
referenciais enfatizados por Platão, e que eram valores buscados pelo povo
grego antigo como um todo. Raros buscam a verdade, os valores éticos, a beleza
e a sua própria liberdade para serem aplicadas e vivenciadas em nossa realidade.
Por outro lado, existir é conviver com os paradoxos e estar entre o sonho e a
tragicidade da realidade.
Mesmo que os céticos neguem os valores da
arte e de seu poder representativo e simbólico. Os piores tiranos da história,
por mais irônico e insanos que possam parecer, demonstram uma sensibilidade com
algum tipo de arte. O imperador Nero, num acesso de loucura e genocídio, mandou
incendiar Roma para encontrar a chama inspiradora para criar uma canção. Hitler
tinha uma verdadeira paixão por obras de arte, inclusive, antes de se tornar o
ditador germânico, tentou ser pintor.
A arte é uma dimensão inerente ao ser
humano, pois é um criador eternamente inquieto e insatisfeito. O mundo dado
como está aí é matéria para ele transformar em seu universo fictício, assim
como o campo das possibilidades é fonte deste poder criador. O pensador Evaldo
Coutinho em sua sugestiva obra “A
Artisticidade do Ser” demonstra
claramente que a criatividade artística é algo pertinente ao ser.
É o caráter demiúrgico e filosófico do ser.
Na perspectiva filosófica e singular de Coutinho “...o conhecimento do Ser e a sua artisticidade são a mesma coisa,
parecendo que a conversão da possibilidade e da realidade em conteúdos de meu
repertório, se opera mediante uma triagem na qual o gosto pela harmonia em
direção à unidade, firma a elaboração da obra.” (1987,p. 170)
O mundo e o campo das possibilidades e da
ficção são matérias transformadas criativamente e com sentidos evaldianos muito
próprios no âmago de sua subjetividade inclusiva, uma vez que ele existência
todo o universo em seu interior.
Sobre a sua dimensão demiúrgica declara ele
no parágrafo anterior: “Ao pesar a
conjuntura da existencialidade em mim, não posso sentir-me como se fora o deus
anteriormente à criação do mundo, mas posso assumir-lhe o papel enquanto sou o
demiurgo de meus existenciamentos desde que nada fui antes de ver-me a
existenciar.” Todo o existir
evaldiano, tudo o que ele observa do mundo externo e do seu imaginário passam a
ter um aspecto profundamente filosófico e artístico em dimensões absolutas até
o prazo de seu perecimento.
Enfim, por mais que queiramos ser
realistas, ter “pés no chão” como se afirma popularmente, é inevitável a sede e
a fome de termos uma visão mais ampla, mais filosófica, mais criativa, artisticamente
falando, do mundo. Não nos contentamos com visões alienantes, uniformizadoras e
massificadoras impostas por ideologias e sistemas. Queremos ir além das
aparências superficiais e dar vazão ao nosso próprio modo de ver panorâmico e
cosmológico do mundo. Para tal é necessário o exercício constante da
criatividade artística e demiurga que há em nós, mesmo convivendo
cotidianamente com todas as contradições, conflitos, tragédias e paradoxos que
a realidade nos impõe e tenta manter os seus grilhões no mundo material e
mental. Afinal, não nascemos para sermos escravos. Nascemos para conquistar e
construir a nossa liberdade. Se no campo político, social e econômico ainda
está longe de a efetivarmos, no campo da arte e do pensar filosófico, esta
efetivação depende exclusivamente de nós.