Texto de Ana Maria Leandro – Escritora – Belo
Horizonte/MG
publicado no HUMANITAS nº 02 – Outubro/2012
Estamos em 19 de Março de 2003. Os EUA
invadem o Iraque com suas tropas. Imagino o pequeno Karim, de apenas cinco
anos, escondido em sua caixa de papelão, que ele ajeitou dentro de um armário
em sua casa. Numa tampinha de lata coberta com papel, ele guarda com cuidado um
punhado de arroz, para comer, segundo ele, durante a guerra. E abre os dedinhos
da mãozinha magra, para mostrar o número de grãos, que ele comerá “um por dia, para durar bastante”. Tem ainda uma laranja, “caso o arroz acabe antes da guerra”. Mas Karim tem esperança de chupar a laranja
após a guerra. Ah! Tem também um saco plástico, com o tesouro de sua infância:
brinquedos, como pequenos carrinhos de plástico e bolinhas de gude. “Para que não se quebrem durante os
ataques”, explica enquanto aperta o
precioso conteúdo entre os braços.
Quando Karim nasceu, sua cidade Bagdá já havia passado pelos horrores da guerra do Golfo. Sete anos antes, mais precisamente em 13 de Fevereiro de 1991, sua terra foi palco da maior tragédia daquele conflito: um bombardeio aliado atacou um abrigo em Bagdá e matou cerca de trezentos civis. No total, calcula-se que o Iraque sofreu cerca de 150 mil a 200 mil mortes em suas tropas àquela época. Além disto, estima-se um número de mortes de até 15 mil pessoas, dos quais quase a metade constituída de crianças, ocorridas também no pós-guerra, decorrentes da fome, de doenças endêmicas e outros mazelas relacionadas.
Karim, portanto, ainda no seu quinto ano de vida, já conhece bem o que é o medo de perda da própria vida e do desaparecimento de seus pais e familiares; as agruras de uma vida de contenção alimentar e outras mazelas, por ter nascido numa zona de conflitos. Mais da metade da população de sua terra sobrevive do programa “comida em troca de petróleo”, coordenado pela ONU e temporariamente interrompido por causa da guerra. Antes mesmo deste conflito, a situação já era extremamente difícil, com altas taxas de anemia e mortes de nascituros, e peso abaixo do normal em recém-nascidos. As reservas de comidas das famílias restringem-se a quantias para quatro a seis semanas, e os invasores já contam com estratégia de vencer, pela queda de resistência, após o fim dos estoques.
Karim, que não pode ainda entender os longos tentáculos da desvairada sede de poder dos homens, só sabe que gostaria de brincar em paz, com seus carrinhos de plástico. O pequeno universo da sua caixa de se esconder, não tem espaço para que ele exerça seu direito de ser criança. Os lados da guerra possuem seus perfis: do lado Oriental um regime brutal de ditadura, que se mantém no poder à custa da tortura e do assassinato, de quem ousar se opor ao seu domínio. Do lado Americano, uma complicada rede de motivos para o conflito, que vão desde “alegações” de razões de origem religiosa e moral, numa pretensa luta do “bem contra o mal”, misturado a interesses, ainda que não declarados, de maior controle sobre campos petrolíferos; eliminação do terrorismo como causa mais alardeada; e por fim, hipoteticamente, o desejo americano de supremacia via um império bélico instalado, numa prepotência e imperialismo, que causa um inevitável sentimento de rejeição no resto do mundo. E o mais grave: sem autorização expressa do Conselho de Segurança da ONU.
No meio deste cruzamento, encontra-se Karim, um representante insofismável, de como inocentes pagam pelo mal que os homens constroem.
Perdoe-nos Karim, que depois de dois milênios, ainda não tenhamos aprendido as soluções de paz. Há um grito no mundo, implorando para que você possa sair da prisão de sua caixa de papelão. Mas antes que você entrasse nela, os homens precisariam ter compreendido, que o maior de todos os valores é a sua vida. Nenhum petróleo, nenhuma crença, nenhum império tem mais valor do que “você”. Por não entenderem isto, continuarão sofrendo e se exterminando reciprocamente, não se sabe por quanto tempo ou eternidade.
Do livro: "A
Coragem e a Delícia de Recomeçar" - Leandro, M Ana - Editora Baraúna -
São Paulo/SP
Quando Karim nasceu, sua cidade Bagdá já havia passado pelos horrores da guerra do Golfo. Sete anos antes, mais precisamente em 13 de Fevereiro de 1991, sua terra foi palco da maior tragédia daquele conflito: um bombardeio aliado atacou um abrigo em Bagdá e matou cerca de trezentos civis. No total, calcula-se que o Iraque sofreu cerca de 150 mil a 200 mil mortes em suas tropas àquela época. Além disto, estima-se um número de mortes de até 15 mil pessoas, dos quais quase a metade constituída de crianças, ocorridas também no pós-guerra, decorrentes da fome, de doenças endêmicas e outros mazelas relacionadas.
Karim, portanto, ainda no seu quinto ano de vida, já conhece bem o que é o medo de perda da própria vida e do desaparecimento de seus pais e familiares; as agruras de uma vida de contenção alimentar e outras mazelas, por ter nascido numa zona de conflitos. Mais da metade da população de sua terra sobrevive do programa “comida em troca de petróleo”, coordenado pela ONU e temporariamente interrompido por causa da guerra. Antes mesmo deste conflito, a situação já era extremamente difícil, com altas taxas de anemia e mortes de nascituros, e peso abaixo do normal em recém-nascidos. As reservas de comidas das famílias restringem-se a quantias para quatro a seis semanas, e os invasores já contam com estratégia de vencer, pela queda de resistência, após o fim dos estoques.
Karim, que não pode ainda entender os longos tentáculos da desvairada sede de poder dos homens, só sabe que gostaria de brincar em paz, com seus carrinhos de plástico. O pequeno universo da sua caixa de se esconder, não tem espaço para que ele exerça seu direito de ser criança. Os lados da guerra possuem seus perfis: do lado Oriental um regime brutal de ditadura, que se mantém no poder à custa da tortura e do assassinato, de quem ousar se opor ao seu domínio. Do lado Americano, uma complicada rede de motivos para o conflito, que vão desde “alegações” de razões de origem religiosa e moral, numa pretensa luta do “bem contra o mal”, misturado a interesses, ainda que não declarados, de maior controle sobre campos petrolíferos; eliminação do terrorismo como causa mais alardeada; e por fim, hipoteticamente, o desejo americano de supremacia via um império bélico instalado, numa prepotência e imperialismo, que causa um inevitável sentimento de rejeição no resto do mundo. E o mais grave: sem autorização expressa do Conselho de Segurança da ONU.
No meio deste cruzamento, encontra-se Karim, um representante insofismável, de como inocentes pagam pelo mal que os homens constroem.
Perdoe-nos Karim, que depois de dois milênios, ainda não tenhamos aprendido as soluções de paz. Há um grito no mundo, implorando para que você possa sair da prisão de sua caixa de papelão. Mas antes que você entrasse nela, os homens precisariam ter compreendido, que o maior de todos os valores é a sua vida. Nenhum petróleo, nenhuma crença, nenhum império tem mais valor do que “você”. Por não entenderem isto, continuarão sofrendo e se exterminando reciprocamente, não se sabe por quanto tempo ou eternidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário