segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

As flores às vezes falam

Texto de Ana Maria Leandro – Escritora – Belo Horizonte/MG
publicado no HUMANITAS nº 8 – Março/2013

Ela o via sempre da janela ao final da tarde. Num tempo em que o flerte antecedia o “ficar” havia ainda um agravante: era quase uma menina; impossível a ousadia de descer. Ela sabia que aproximar-se fisicamente poderia custar a ele a própria vida.
Mas era quase um encontro marcado. Ele vinha do trabalho numa carvoaria, as roupas negras da matéria prima, mas o rosto lavado. Cruzava vagarosamente a calçada, sob a alta janela do sobrado de varandas alinhadas do palacete. O olhar luminoso no contraste com a cor dos trajes parecia implorar que ela descesse; mas ela não ousava. Já era muita a coragem de encontrar-se à distância...
A mãe percebeu. As mães sempre percebem... E a mãe passou a ir fazer seus bordados, ao final da tarde, na janela ao lado. Queria controlar os olhares. E os olhares não mais puderam se encontrar. O medo afastou a menina da janela...
De repente, ela começou a encontrar uma rosa jogada na sacada. Cedo se levantava para ver a rosa ser atirada. Mas jamais conseguiu alcançar o ato do lançamento.
Madrugada ainda ele se levantava para o trabalho, mas antes de sair colhia uma rosa do jardim do casebre onde morava, para mandar um recado à amada. Passou a cuidar mais do jardim, nos poucos horários de folga. E enquanto cuidava das rosas dizia a cada uma: “quando ela a encontrar, diga-lhe que eu a amo”. 
As rosas formaram um buquê de sonhos na menina da janela. Ela tinha certeza da procedência das rosas. Ouvia-lhes os recados. E com elas conversava. Este encontro a mãe não conseguiu impedir, pois o flagrante da entrega nunca foi possível alcançar.
Era tudo absurdamente impossível. Ela, a filha do coronel, proprietário de terras sem fim, do palacete avarandado, do quarteirão quase todo.  Ele, o carvoeiro sem futuro. Sem nome, sem posses, sem história... Somente com um coração apaixonado.
Mas as rosas contavam histórias inimagináveis ao coração da jovem. Ele hoje lhe fez versos, diziam-lhe. Vou contar-lhe um dos versos: “Menina que bom seria / se eu pudesse lhe alcançar / Mas sua janela é tão alta / só mais alto é o meu penar...” 
Certo dia, por fim, ela esgueirou-se da cama na madrugada no quarto onde dormia sozinha, para assistir o lançamento da rosa. Queria vê-lo, pelo menos mais uma vez. Mas a rosa não foi lançada. O jovem de roupas negras e olhos verdes teria desistido? Ela chorou e neste dia nem ao menos havia uma rosa, para ouvir o seu lamento.
Dias, meses, anos se passaram. E nunca mais uma rosa foi lançada. O tempo é inexorável. Foram-se os pais. E ela foi ficando na solidão da sua espera. Todos os dias postava-se à janela. Mas os olhos verdes nunca mais apareceram, para jogar seu facho de luz na sacada... Nem a rosa. E nenhum outro foi capaz de invadir-lhe o coração.
Então ela começou a fazer o seu jardim de rosas. Tornou-se famosa pelo cultivo das mais belas espécies. Cedo se levantava e fazia questão de cuidar pessoalmente do seu jardim. A herança familiar jamais a deixou em dificuldades. Nada lhe faltava... Exceto uma rosa lançada na sacada, pelo dono de um par de olhos verdes.
Hoje, quando lhe perguntam o segredo de suas rosas ela diz: “elas sabem falar...”.

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