sábado, 15 de fevereiro de 2014

O sonho de Fil da Rocinha


Texto de Ana Maria Leandro – Escritora – Belo Horizonte/MG
publicado no HUMANITAS nº 5 – Dezembro/2012

Me chamam de “Fil”. É um apelido menos pedante que “Filipe”, mas foi mamãe que escolheu no registro. Disse que colocou este nome, porque é nome de rico, até mesmo de príncipe. Que quando eu crescer vou ser importante, que um dia ela conseguirá sair da Rocinha e vai me colocar em escola boa. Ela diz que está juntando dinheiro para me levar daquele lugar. Não sei dinheiro “de que” ela está juntando!
Até que ela faz muita faxina, desde pequeno eu fico sozinho enquanto ela vai trabalhar. Mas o dinheiro da faxina só dá pra comprar arroz e macarrão, roupas ganhamos. Carne só quando as patroas dão um pedaço. Dizem que eu não pareço menino de favela, porque sou louro, tenho cabelos encaracolados e olhos azuis.
Muita madames já pediram para que mamãe me deixe com elas, mas ela diz que filho não é coisa que se dê. Diz também que teve juízo de ter um só, para dar conta de criar. Também eu não quero ir ficar com ninguém, gosto muito da minha mãe. Ela é muito bonita, além de ser carinhosa.
Você acredita que até hoje ela canta cantiga de ninar para eu dormir? Imagine, eu, um marmanjo de cinco anos, ainda gosto de dormir no colo dela! Finjo que estou dormindo, e ela me carrega para a cama. Também gosto de onde moro, só tenho medo quando começam os tiroteios no beco. Dias assim a minha mãe nem vai trabalhar.
Outro dia um homem chutou a nossa porta e gritou que deixasse ele se esconder no barraco. Vocês nem imaginam a confusão que deu! Logo chegou a polícia e levou até a minha mãe. Gritei que queria ir junto, mas a vizinha me levou para casa dela e pediu para eu ficar lá até mamãe voltar. Só no outro dia ela voltou e tinha um olho roxo, que ela nunca me explicou direito.
 Nesse dia dormimos abraçados e com muito medo. Para dizer a verdade, não “dormimos” mesmo. Ela pensa que eu não vi, mas ela chorou a noite toda. Quando me colocou na cama, achou que eu estava dormindo e falou baixinho; “perdoe meu filho, eu ter lhe dado este mundo mal. Mas um dia eu vou tirar você daqui!”
Depois daquele dia não durmo mais direito. Se começa algum tiroteio ajudo minha mãe a empurrar a velha geladeira para escorar a porta, para não entrar outro homem a força. Só por isto tenho vontade de sair da Rocinha. No resto tem muita gente boa lá.
Tem por exemplo o Zuza, meu amiguinho que joga bolinha de gude comigo no quintal. Engraçado, não é? A gente fica preso dentro de casa. Pensei que prisão era coisa só pra quem faz coisa errada. Gente grande arranja cada confusão!
Mamãe andava meio esquisita ultimamente. Ela não gosta de namorar, diz que naquele lugar não tem ninguém que sirva para ser meu pai. O meu pai mesmo, ela nunca me explicou direito onde foi parar. Às vezes ela diz que ele já morreu. Outras vezes diz que sumiu, ou melhor, não quis me “assumir”. Nem me importo, se ele não me amava, melhor mesmo é ir para onde possa ser feliz.
 Mas ultimamente uns homens estavam indo à minha casa. Minha mãe dizia que eram amigos e eles precisavam deixar na nossa casa uns embrulhos bem guardados. Eu não devia mexer, nem contar a ninguém.
Aprendi com mamãe, que a gente não deve mesmo mexer em coisas que não são da gente. Mamãe dizia que eles pagavam para ela guardar, por isto estava podendo ficar sem ir trabalhar. Acho que é parte deste dinheiro que ela vinha guardando, para mudarmos de lá.
Um dia ela disse a um dos homens, que seria a última vez que ela guardaria. Ele deu uma gargalhada e disse “veremos”. Não gostei do jeito dele. Não sei por que, me lembrei do olho roxo de mamãe. Meu coração ficou apertado de doer. O meu colega Zuza é dois anos mais velho que eu e já está na escola. Mas já tem uma semana que ele não vai, porque proibiram a diretora de abrir a escola. Eu não entendi, sempre pensei que escola fosse coisa muito boa. Mamãe disse que quando mudarmos estudarei em escola particular. E que quando eu crescer serei uma pessoa muito importante e garantir boa escola para todas as crianças. Pensei que já existissem essas pessoas, mas se na Rocinha as escolas precisam ficar fechadas, deve ser que estão faltando. Será que vou conseguir resolver tudo isto, quando for grande?
Estou contando toda essa história, enquanto espero minha mãe. Tenho muito medo dela não voltar. Hoje uns policiais chegaram na minha casa, revistaram tudo e encontraram os embrulhos. Levaram minha mãe, mesmo comigo gritando e segurando a saia dela. Uma policial mulher me segurou, enquanto minha mãe foi levada no camburão. Depois a policial me trouxe para um lugar onde tem muitas crianças. Não quero falar com ninguém. Não tomei a sopa que me deram e não vou dormir enquanto minha mãe não chegar, pois só durmo no colo dela. Espero mamãe... Espero que desta vez ela não leve outro tombo.
Meu coração está muito apertado. Estou pensando, se algum dia o sonho da minha mãe vai se realizar. A gente morando longe da Rocinha, eu estudando muito, até ser doutor e ajudar crianças a terem boa escola. Quem sabe um dia lá na Rocinha mesmo, as pessoas boas ainda possam ir ao quintal, sair ás ruas, estudar, crescer e ganhar bem com trabalho honesto, sem precisar guardar embrulho de ninguém.
Alguém tem de me explicar, que embrulho era aquele e porque os policiais levaram minha mãe. Tenho sono, mas meu corpo está doendo, acho que de tanto ficar muito encolhido. Tenho muito medo de minha mãe não voltar e sinto falta do seu colo. Vou tentar dormir assim mesmo. Quem sabe eu sonhe com a Rocinha cheia de jardins, crianças brincando nos quintais, escolas abertas, pais trabalhando e mães embalando seus filhos com cantigas de ninar.

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