Texto de Araken Passos Vaz Galvão Sampaio –
Escritor – Valença/BA
publicado no HUMANITAS nº 5 – Dezembro/2012
A língua tupi entrou em minha vida pela primeira vez logo que nasci.Melhor dizendo, deu identidade a um ser que apenas começava a existir
A língua tupi entrou em minha vida pela primeira vez logo que nasci.Melhor dizendo, deu identidade a um ser que apenas começava a existir
A língua tupi entrou na minha vida de forma
inesperada. Segundo contava minha mãe (já falecida), até o dia do meu batizado
eu ainda não tinha nome. A opção do meu pai – germanófilo inveterado – era por
Kepler (1), o mesmo nome que tinha sido dado a um dos meus irmãos – o terceiro
de uma leva de oito – que faleceu antes dos três anos. Minha mãe, temerosa que
eu – que viria a ser o caçula – viesse também a morrer, opôs-se
terminantemente. Surgiu o nome de Sebastião – como o rei prometido, também
morto jovem e de forma misteriosa – que minha mãe também recusou, não pela possibilidade
de morte prematura, mas pela fatalidade de vir a ser chamado de Tião (2). “Que horror! Filho meu não terá esse nome”.
Minha madrinha, Julita – também já falecida – interveio com uma solução romântica, não no sentido que se dá comumente a esta palavra, mas indo no romantismo brasileiro buscar o nome que seria a solução. Há um belo romance – disse ela –, Iracema, que tem o nome também muito bonito: Araken (ela poderia ter dito Arakem (3) ou mesmo Araquém, que isso nunca será comprovado), que vem a ser o pai de Iracema. Assim fui batizado. Dez anos mais tarde, quando fui registrado (4), o escrivão de Aiquara, o senhor Francisco de Moreira Rios, grafou o meu nome com k e ene e eu fiquei sendo Araken Vaz Galvão. Assim o tupi entrou em minha vida pela primeira vez. Melhor dizendo, deu identidade a um ser que apenas começava a existir – pelo menos a existir socialmente, já que civilmente demorou um pouco mais –, porém eu ainda não tinha o grau de compreensão para saber que aquele nome, Araken, era uma palavra tupi.
Nasci no município de Jequié. Hoje sei que Jequié, cuja forma correta é Tikí-é, significa “o covo (armadilha de pesca formada por esteiras armadas em paus e munidas de sapatas de chumbo. Pode ser também côncavo, fundo) de forma diversa. Entretanto, o vocábulo pode ter procedido da alteração de Yaquié, palavra da língua dos Camacãs, para exprimir onça, cachorro”, isto na concepção de Teodoro Sampaio. Já Falcão afirma que a palavra se formou pela junção de Jequi (covo) mais eé (arrastar), significando “covo de arrasto” ou “rio do covo”. Podendo ser ainda “covo diferente, que não é como os demais”(5).
Quando eu tinha quatro anos, já armazenando minhas primeiras vivências, que viriam a formar minha memória, meu pai já tinha sua própria fazenda, a São Bernardo, no município de Rio Novo. Mais tarde soube que este município passara a chamar-se Ipiaú. E esta é uma palavra tupi. E esta tem (ou pode ter), ao que parece, significados múltiplos.
“Falcão dá, para ela, quatro opções: O peixe que tem a pele manchada, e cita a sardinha e uma variedade de piau; Rio Novo é a outra opção, a qual foi durante muitos anos o nome do município onde morei na minha primeira infância (às margens do rio de Contas). A terceira opção seria uma derivação de Ibiaú, que Falcão explica ser uma ‘variedade de peixe de água doce’. Por último, esta palavra seria uma derivação de Aioi-aúba, que significa “falsa anchova”. De Rio Novo (Ipiaú), meu pai decidiu comprar terras em Minas e empreendeu, com a família, uma viagem que durou um ano. O primeiro trecho foi de canoa, até Itabira, que Sampaio registra como “pedra levantada ou empinada”.
Falcão o faz, mais ou menos, da mesma forma: Ytá (pedra) mais Apyra (cume, cabeça, ponta) “ponta da rocha, pico do rochedo”. Muitos anos mais tarde, quando voltei definitivamente para a Bahia, procurei por Itabira e não a encontrei.
Intrigado, indaguei. Tinha mudado de nome, agora era Ubaitaba, palavra tupi que Sampaio não registra, cita apenas Ubá-y, que significa “Rio das frutas”, alertando que pode ser a corrupção de uyba-y, ou seja, o “rio das canas bravas”. Falcão, por seu lado, diz que esta palavra é formada pela junção de Ubá (canoa) com I (água), mais Taba (pêlo, felpa, cordéis), significando “rio das canoas com limo”. Como segunda opção dá “porto das canoas” (6).
Mas estou me adiantando aos fatos, fugindo da ordem cronológica de como o tupi entrou na minha vida. Estava indo, ou melhor, sendo levado para Minas, tinha menos que quatro anos, lembro-me, pois, de poucas coisas.
De Itabira (Ubaitaba) fomos para Itabuna. Novamente o tupi. Para essa palavra, Falcão dá duas opções: “Lajes pretas ou pedras chatas pretas”. Composta de: Ita-buna. E, citando Tibiriçá, oferece a opção de “Aldeia escura, aldeia negra”, assim composta: i-tab-uma.
Dessa viagem, pouco me lembro. Algumas palavras, normalmente nomes de alguma cidade. Como é o caso de Aimorés. Esta, no dicionário do Falcão, está registrada como derivada de quay, mur, ré, significando “gente diferente”.
Sabemos, porém, que esta era a forma como os tupis chamavam os índios botocudos, e faziam de forma pejorativa. Mais ou menos como “gente diferente, sim, porém, rústica, atrasada, bruta”, que eram seus figadais inimigos. Nesta palavra está o adjetivo aí ou aim, que, como sufixo, é o mesmo que áspero, crespo.
A fazenda onde nasci, no município de Jequié, ficava próxima à vila de Aiquara – hoje, pequeno município emancipado – onde ainda vivem vários Vaz, meus parentes. Aiquara significa ai (preguiça, o animal) quara (buraco, morada), o refúgio da preguiça.
Uma das fazendas do meu avô, a que ficava justamente na direção de Aiquara, chamava-se Jacutinga. Esta palavra, sem saber que era tupi, é minha velha conhecida, designa uma ave de carne saborosa, difícil de se deixar caçar, o Jacu (Yacú), que, descobri mais tarde, significa esperto, cuidadoso, desconfiado, cauteloso. Tinga, como é sabido, é branco. Logo, significa jacu branco. Essa última informação é confirmada por Silveira Bueno
Minha madrinha, Julita – também já falecida – interveio com uma solução romântica, não no sentido que se dá comumente a esta palavra, mas indo no romantismo brasileiro buscar o nome que seria a solução. Há um belo romance – disse ela –, Iracema, que tem o nome também muito bonito: Araken (ela poderia ter dito Arakem (3) ou mesmo Araquém, que isso nunca será comprovado), que vem a ser o pai de Iracema. Assim fui batizado. Dez anos mais tarde, quando fui registrado (4), o escrivão de Aiquara, o senhor Francisco de Moreira Rios, grafou o meu nome com k e ene e eu fiquei sendo Araken Vaz Galvão. Assim o tupi entrou em minha vida pela primeira vez. Melhor dizendo, deu identidade a um ser que apenas começava a existir – pelo menos a existir socialmente, já que civilmente demorou um pouco mais –, porém eu ainda não tinha o grau de compreensão para saber que aquele nome, Araken, era uma palavra tupi.
Nasci no município de Jequié. Hoje sei que Jequié, cuja forma correta é Tikí-é, significa “o covo (armadilha de pesca formada por esteiras armadas em paus e munidas de sapatas de chumbo. Pode ser também côncavo, fundo) de forma diversa. Entretanto, o vocábulo pode ter procedido da alteração de Yaquié, palavra da língua dos Camacãs, para exprimir onça, cachorro”, isto na concepção de Teodoro Sampaio. Já Falcão afirma que a palavra se formou pela junção de Jequi (covo) mais eé (arrastar), significando “covo de arrasto” ou “rio do covo”. Podendo ser ainda “covo diferente, que não é como os demais”(5).
Quando eu tinha quatro anos, já armazenando minhas primeiras vivências, que viriam a formar minha memória, meu pai já tinha sua própria fazenda, a São Bernardo, no município de Rio Novo. Mais tarde soube que este município passara a chamar-se Ipiaú. E esta é uma palavra tupi. E esta tem (ou pode ter), ao que parece, significados múltiplos.
“Falcão dá, para ela, quatro opções: O peixe que tem a pele manchada, e cita a sardinha e uma variedade de piau; Rio Novo é a outra opção, a qual foi durante muitos anos o nome do município onde morei na minha primeira infância (às margens do rio de Contas). A terceira opção seria uma derivação de Ibiaú, que Falcão explica ser uma ‘variedade de peixe de água doce’. Por último, esta palavra seria uma derivação de Aioi-aúba, que significa “falsa anchova”. De Rio Novo (Ipiaú), meu pai decidiu comprar terras em Minas e empreendeu, com a família, uma viagem que durou um ano. O primeiro trecho foi de canoa, até Itabira, que Sampaio registra como “pedra levantada ou empinada”.
Falcão o faz, mais ou menos, da mesma forma: Ytá (pedra) mais Apyra (cume, cabeça, ponta) “ponta da rocha, pico do rochedo”. Muitos anos mais tarde, quando voltei definitivamente para a Bahia, procurei por Itabira e não a encontrei.
Intrigado, indaguei. Tinha mudado de nome, agora era Ubaitaba, palavra tupi que Sampaio não registra, cita apenas Ubá-y, que significa “Rio das frutas”, alertando que pode ser a corrupção de uyba-y, ou seja, o “rio das canas bravas”. Falcão, por seu lado, diz que esta palavra é formada pela junção de Ubá (canoa) com I (água), mais Taba (pêlo, felpa, cordéis), significando “rio das canoas com limo”. Como segunda opção dá “porto das canoas” (6).
Mas estou me adiantando aos fatos, fugindo da ordem cronológica de como o tupi entrou na minha vida. Estava indo, ou melhor, sendo levado para Minas, tinha menos que quatro anos, lembro-me, pois, de poucas coisas.
De Itabira (Ubaitaba) fomos para Itabuna. Novamente o tupi. Para essa palavra, Falcão dá duas opções: “Lajes pretas ou pedras chatas pretas”. Composta de: Ita-buna. E, citando Tibiriçá, oferece a opção de “Aldeia escura, aldeia negra”, assim composta: i-tab-uma.
Dessa viagem, pouco me lembro. Algumas palavras, normalmente nomes de alguma cidade. Como é o caso de Aimorés. Esta, no dicionário do Falcão, está registrada como derivada de quay, mur, ré, significando “gente diferente”.
Sabemos, porém, que esta era a forma como os tupis chamavam os índios botocudos, e faziam de forma pejorativa. Mais ou menos como “gente diferente, sim, porém, rústica, atrasada, bruta”, que eram seus figadais inimigos. Nesta palavra está o adjetivo aí ou aim, que, como sufixo, é o mesmo que áspero, crespo.
A fazenda onde nasci, no município de Jequié, ficava próxima à vila de Aiquara – hoje, pequeno município emancipado – onde ainda vivem vários Vaz, meus parentes. Aiquara significa ai (preguiça, o animal) quara (buraco, morada), o refúgio da preguiça.
Uma das fazendas do meu avô, a que ficava justamente na direção de Aiquara, chamava-se Jacutinga. Esta palavra, sem saber que era tupi, é minha velha conhecida, designa uma ave de carne saborosa, difícil de se deixar caçar, o Jacu (Yacú), que, descobri mais tarde, significa esperto, cuidadoso, desconfiado, cauteloso. Tinga, como é sabido, é branco. Logo, significa jacu branco. Essa última informação é confirmada por Silveira Bueno
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(1) Johannes Kepler (1571-1630)
Cientista alemão que formulou três leis fundamentais da mecânica celeste,
conhecidas como Leis de Kepler.
(2)
Que o meu amigo e defensor do meio ambiente, o grande fotógrafo Sebastião
Salgado – Tião Salgado – não se sinta atingido com a descriminação pueril de
minha mãe.
(3) Até hoje não consegui descobrir o
significado deste nome, que também é meu.
(4) Naqueles bons tempos tinha muita
displicência no registro dos filhos. Meu pai optou por registrar todos assim
que minha mãe terminasse sua postura
(palavras dele), coisa que só foi feita – todos de uma vez – depois de sua
prematura morte.
(5) Covo é o mesmo que “Armadilha de
pesca formada por esteiras armadas em paus e munidas de sapatas de chumbo. Pode
ser também côncavo, fundo”.
(6) Esta palavra, que é de um idioma dos
índios aruaques, veio para o nosso idioma, através do espanhol. O nome tupi é Ubá
– segundo Falcão.
O autor é membro titular do Conselho Estadual de Cultura da Bahia,
da Academia Valenciana de Educadores, Letras e Artes, em Valença/BA. Livros
publicados: Valença,
História de uma cidade (ensaio histórico); Crônica de uma Família Sertaneja (romance); Pargo (contos); participação e
organização nas antologias Todas as Estações (Segundo Livro), Rio de Letras, Valenciando e Trívio. Contato: arakenvaz@gmail.com ou http://arakenvaz.blogspot.com
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