Texto de Valdeci Ferraz – Advogado - Caruaru/PE
publicado no HUMANITAS nº 03 – Outubro/2012
publicado no HUMANITAS nº 03 – Outubro/2012
O homem olhou ternamente para a
neta. Estava uma mocinha nos seus dez anos. De repente uma nuvem de tristeza
cobriu-lhe a fronte. Em breve ele seria apenas uma lembrança naquela cabecinha.
Olhou ao redor na tentativa de segurar com a força da mente o tempo que sentia
escorrer naqueles espaços densos e cheios de vida. E se...? - pensou. E o
pensamento lhe pareceu uma tolice. Corrigiu a posição dos dedos dela sobre a
flauta doce e recomeçou: um, dois.. e a menina concluiu sem erro a escala
completa de dó maior.
-Vovô!
Posso descansar um pouco?
-Vá,
depois a gente continua.
Maria
Eduarda saiu sem perceber que arrastara consigo um pedaço da nuvem que se
instalara na sala. O pensamento voltou insistente como algo que precisasse
desesperadamente criar forma, nascer, concretizar-se. E se ela escrevesse...,
mas o que poderia uma garotinha de dez anos escrever para si mesma daqui a
quarenta anos? Decerto ele não estaria vivo para saber, mas era uma maneira de
ludibriar o tempo. Ela faria uma carta endereçada a si mesma e tal missiva
seria guardada. Após quarenta anos a mãe, o pai ou qualquer outra pessoa lhe
entregaria a carta. Um intervalo de quarenta anos condensado num instante de
vida. Ideia absurda, surreal, mas que não queria deixá-lo quieto. Assim que
Maria Eduarda voltou ouviu a pergunta, ficando um pouco desnorteada com a
estranha ideia do avô.
-Vamos
brincar com o tempo? Pegue aquela caneta. Você vai escrever uma carta.
-Uma
carta? Para quem? Não sou muito boa em redação.
-Não tem
problema porque será uma carta para você mesma. Depois que você escrever vou
selar e guardar com sete capas.
-Sete
capas? O que é isso?
-É uma
força de expressão. Quero dizer que será um segredo. Ninguém poderá saber. Só
depois de quarenta anos. No dia que você completar cinquenta anos receberá a
carta de volta e poderá rir do tempo.
-De onde
o senhor tirou essa ideia?
-Na
verdade essa ideia surgiu quando fui visitar uma velha conhecida de minha mãe.
O nome
dela também era Maria. Ela ajudou muito a gente no bairro de Águas Compridas,
em Olinda. Dividia o pão, matou muitas vezes a minha fome e a de meus irmãos.
Assim que chegamos para morar ali cometi um erro gravíssimo. Comecei a furtar
as garrafas que o marido dela tinha no quintal. Furtava para vender e comprar
gibis ou ir ao cinema. Um dia, dona Maria descobriu. Fez um trato comigo: prometi
nunca mais furtar nada e em troca ela não contaria para minha mãe.
Cresci,
estudei, tornei-me oficial da polícia militar, sai do bairro de Águas
Compridas, mamãe morreu, mas Dona Maria continua viva, rodeada de netos e
bisnetos. Depois que saí de lá ela nunca mais me viu e nunca me verá. O
glaucoma tirou-lhe a visão. Então, um dia fui visitá-la. Ela quase morre de
alegria quando reconheceu a minha voz. Antes de deixar que ela me tocasse o
rosto perguntei se ela lembrava como eu era. Era claro que ela lembrava. Na
mente dela eu continuava aquele menino magrinho, de cabelo ondulado, olhar
esperto, que gostava de desenhar com carvão nas calçadas das casas. Quando as
mãos dela acariciaram meu rosto ficaram inundadas de lágrimas que não consegui
segurar.
Então, pude
me ver mandando uma mensagem para mim mesmo.
- Qual
foi a mensagem? - perguntou Maria Eduarda.
- Quando
você receber sua própria carta saberá qual foi.
- Mas se
eu morrer antes dos cinquenta?
- A
carta será aberta e o tempo já não existirá.
E assim Maria Eduarda escreveu naquele dia a carta mais longa de sua vida.
E assim Maria Eduarda escreveu naquele dia a carta mais longa de sua vida.
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